"Se eu não a matasse, ela é que me mataria, arrancaria o coração da minha escrita" (V.Woolf)


A "mulher" a quem Temer se referia no discurso é aquela que Virgínia Woolf (1882-1941) precisou matar para sobreviver com dignidade:
“e quando eu estava escrevendo aquela resenha, descobri que, se fosse resenhar livros, ia ter de combater um certo fantasma. E o fantasma era uma mulher, e quando a conheci melhor, dei a ela o nome da heroína de um famoso poema, o anjo do lar (Coventry Patmore – 1823 a 1896). Era ela que costumava aparecer entre mim e o papel enquanto eu fazia resenhas. Era ela que me incomodava, tomava meu tempo e me atormentava tanto que no fim matei essa mulher. Vocês, que são de uma geração mais jovem e mais feliz, talvez não tenham ouvido falar dela – talvez não saibam o que quero dizer com o anjo do lar. Vou tentar resumi. Ela era extremamente simpática. Imensamente encantadora. Totalmente altruísta. Excelente nas difíceis artes do convívio familiar. Sacrificava-se todos os dias. Se o almoço era frango, ela ficava com os pés; se havia ar encanado, era ali que ia se sentar – em suma, seu feitio era nunca ter opinião ou vontade própria, e preferia sempre concordar com as opiniões e vontades dos outros (...). Quer dizer, na hora em que peguei a caneta para resenhar aquele romance de um homem famoso, ela logo apareceu atrás de mim e sussurrou: 'querida, você é uma moça. Está escrevendo sobre um livro que foi escrito por um homem. Seja afável; seja meiga; lisonjeie; engane; (...) nunca deixe ninguém perceber que você tem opinião própria (...)'. Fui para cima dela e agarrei-a pela garganta, fiz de tudo para esmaga-la. Minha desculpa, se tivesse que comparecer a um tribunal, seria de legítima defesa. Se eu não a matasse, ela é que me mataria, arrancaria o coração da minha escrita. Pois na hora em que pus a caneta no papel, percebi que não dá para fazer nem mesmo uma resenha sem ter opinião própria (...). Assim, toda vez que eu percebia a sombra de sua asa ou brilho de sua auréola em cima da página, eu pegava o tinteiro e atirava nela” (WOOLF, Virginia. Profissões para mulheres e outros artigos feministas. São Paulo: LP&M, 2012).
Se ao final desta leitura, você está querendo matar a mim, a Virginia ou a quem mais pensa assim, cuidado! É bem provável que este “anjo do lar” esteja, mais uma vez, conseguindo uma das suas muitas TEMERidades.
Que nós conhecemos os supermercados, é fato. Que a nós, geralmente, se atribui a maior parcela do cuidado e da educação das crianças, é ato. No entanto, desato-me, pois, se o fazemos e quando o fazemos, nem sempre o que nos rege é a construída ideia do “natural” prazer, este que nos encarcera ao longo dos séculos.
É contra esta ideia e a favor de que as mulheres estejam onde quiserem e sejam o que quiserem que eu sigo escrevendo e cortando as asas e auréolas da morte.

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