Para despedir-me da tia Nésia, fui me encontrar com Picasso...
Hoje a tia Nésia faleceu. Ao saber da notícia,
o choro contido não coube no lugar por mim estipulado, chorei, chorei, alto e
muito, chorei. Nesse tempo, a solidária mão de Deus se fazia presente por meio
de amigas que me acolheram, acalentaram com o cuidado de quem sofre junto. Uma
delas orou por mim e na sua prece uma frase me tocou de forma especial:
"nós não estamos preparadas para despedidas e sim para os encontros".
É verdade, eu não consigo lidar
bem com despedidas, sempre as faço depois de muito esforço e, pelo meu não
preparo em despedir-me, levo tempo para perceber que a outra pessoa já foi. A
tarde transcorreu e, entre uma tarefa e outra me exigida no trabalho, o
sentimento de despedida buscava na memória os bons tempos de encontro. Terminou
o expediente. Fui andar. Para fugir da despedida da querida tia Nésia, decidi
encontrar Picasso no centro de São Paulo.
No correr
frenético do metrô nos trilhos, eu sigo com o coração apertado e, às vezes, com
os olhos marejados. Chego ao CCBB e no frio e na fila, espero. Em um tempo de
espera nada angustiante como o da fila do supermercado, leio o encarte da
exposição, futuco o celular, leio as pessoas, lembro da família, da tia querida
que se foi, da morte e seus entornos, da vida e alguns dos seus transtornos.
lembro, lembro, lembro até que entro.
O encontro vai começando aos
poucos, embora já tivesse visto algumas obras desse espanhol, outras facetas de
sua criatividade foram se mostrando a mim: as mulheres e o pintor, o pintor e
as mulheres, o cavalo, o minotauro, o duelo entre eles, a menina com a pomba e
sua preciosa e portentosa tarefa de guiar o touro homem, me aproximavam da obra
“Guernica”, uma das mais emblemáticas desse vulcão que vai para além dos cubos.
“Guernica”, obviamente, não
estava lá, me aproximei dela por meio de alguns dos seus ensaios e de duas experiências
sensoriais: a música flamenca misturada ao som das bombas que caíram na cidade
que deu nome à obra, e o documentário que nos faz conhecer o cenário histórico
dessa obra. Em meio à Guerra Civil Espanhola, a pequena e não poderosa cidade basca
é bombardeada pela barbárie ditatorial. Esse
bombardeio ocorre em 26 de abril de 1937, mais de 30 toneladas de bombas
promovem desencontros e despedidas forçadas entre 10 mil pessoas que lá estavam.
A obra “Guernica” é o grito de protesto e repúdio de Picasso a esse horror.
Ao assistir o documentário, as
imagens da obra se mesclavam aos seus ensaios e, mais do que de repente e de
forma inesperada, eu encontrava com a minha querida tia Nésia. Enquanto aquela
sucessão de imagens se dava, eu me dava conta dos ensaios da vida. A tão
admirada obra é fruto de muito ensaio, de mudanças, de transformações, Picasso
mudou Guernica sete vezes. Junto aqueles ensaios, me viam as cores e curvas do
rosto da tia, o seu olho azul que nos convidava a mergulhar na sua prosa
gostosa, o seu sorriso sonoro que aguçava nossos ouvidos para as notas de
alegria. Conversa boa, carinho fácil, bondade e meiguice transbordantes. A última
vez que ad-MIREI a sua presença foi em março, sem adivinhar ou suspeitar de
nada, fiquei um bom tempo proseando e ensaiando com ela. Agora, seus ensaios na
vida acabaram e a obra prima foi finalizada. Eu ainda ensaio...
Nesse texto, que de obra prima não
tem nada, coloco o meu protesto em palavras, assim vou encontrando maneiras de
secar as minhas lágrimas. Essa notícia veio como bomba em meu coração e me
provocou uma despedida que eu não queria, mas também um encontro que eu há
muito desejava. A obra da vida não se faz de primeira, os ensaios são os
espaços que pincéis, lápis, borrachas e apontadores vão afinando e harmonizando
seus passos. São os ensaios tão importantes quanto a obra, eles a humanizam, a
realizam, a recriam.
Que bom que os
ensaios existem! Quantas vezes preciso de borrachas, traço o que não desejo, borro,
derramo tinta...mas a realidade é que a obra precisa sair, precisa acontecer,
os traços e passos da vida precisam deixar os ensaios...Creio na graça criativa
de Deus que me orienta e me possibilita recomeçar quando necessário, mas que
também me impulsiona a não ter medo de traçar a realidade, trançar a história e
tramar a vida. Ainda choro, ainda ensaio, ainda vivo...sigo em frente porque agora
é hora de Picasso e tia Nésia se encontrarem no desenho da eTERNAidade.
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