Em meio à tristeza, uma criança e alguns botões de orquídeas...


Em cinco dias do mês de junho perdi 3 pessoas queridas: no dia 2/6, minha tia Nésia e no dia 05, o especial Luciano e a minha madrinha Ivone, pessoa que deu a minha infância um gosto de feijão com banana. Isso mesmo, banana com feijão! Por favor, não torçam o nariz antes de experimentar essa iguaria. Sentindo na boca esse saudoso gosto, é para ela o próximo parágrafo.

A casa da minha madrinha era o único espaço que eu podia comer feijão com banana quando, quanto e onde quisesse. Com essa miúda e mansa pessoa a minha infância também teve gosto de bala de leite, aquela branquinha que se vende em trem e se come em festa de aniversário. Meu padrinho preparava e vendia essas balas, ninguém podia chegar perto da massa, mas minha madrinha sempre deixava a gente pegar um pedacinho escondido. Não há momento melhor para comer esta bala do que quando ainda está “puxenta”. Ah! Ela era a única pessoa que eu conhecia que respeitava o aviso da censura que vinha antes de cada programa de televisão. Em sua casa tive o meu primeiro e único contato (escondido, é claro) com Fred Krueger. Hora do pesadelo 1. Depois de ter voltado do Tivole Park com uma picada de abelha, terminamos o dia assistindo esse filme. Não preciso contar em detalhes o que aconteceu depois, mas resumo que, para além do fato de não ter dormindo a noite toda por causa do medo, eu fiquei um bom tempo sem comer mostarda por acha que era isso que tinha na barriga do nada gastronômico Fred quando ele a mostrava...

Em tempos de perda, usamos a memória em nosso favor. Nesse tempo de dor, meu olhar se perde nas lembranças e vou vasculhando tudo de bom que vivi com as pessoas que já não estão perto. É uma espécie de consolo que acaba por reafirmar o quanto tem sentido a tristeza e a dor que sentimos.

Eu não fui ao funeral da minha tia e nem da minha madrinha, não tinha forças para me mover daqui de SP até o RJ, não tinha. Fui ao funeral do Luciano, e esse menino que tanta solidariedade exalava, me permitiu por meio daquela bela cerimônia, chorar a dor de outras duas pessoas além dele. Tudo tão lindo, tão generoso, o consolo era exalado no sorriso acolhedor, nos solidários abraços, nas músicas, na poesia, nas lembranças carinhosas, em tantas coisas e em tudo...

É muito comum levarmos flores aos funerais, não sei bem a origem disso... O Luciano com certeza teria algo a dizer sobre essa tradição. Nesse funeral não se jogou flores, mas se espalhou palavras que representavam o Luciano. Que momento belo! Cada palavra exalava o aroma de um jardim inteiro! Por falar em jardim, me lembro que o Luciano me apresentou Jesus como um Jardineiro e seguramente as palavrasflores espalhadas ali foram frutos da Graça desse Jardineiro na vida do Lu. Ao final do culto eu queria ir embora, mas era preciso fechar o ciclo.... Como sempre demoro para fechar ciclos e às vezes não os fecho... eu não queria ir até o final, mas fui ao crematório. Como é difícil ver um caixão se fechar!

Enquanto a última música ecoava, o silêncio da dor e o desejo de que isso não fosse verdade uniam as pessoas em um diálogo. Eu queria que aquela música acabasse logo, mas ela não acabava, eu queria sair correndo, mas precisava ficar até o final. Naquele movimento que me fazia inquieta e impotente, recebi o olhar carinhoso de um menino, não sei seu nome, mas senti que seria assim que o Deus menino olharia para mim. Nos olhos daquele recém chegado à vida, eu escutei o consolo que precisava. Aos meus ouvidos, tal consolo ecoou assim: não se desesperance! Não se desesperance! Chore, mas não se desesperance. Eu mandei um beijinho muito tímido para o pequeno que, sem tirar os olhos de mim, com toda a discrição que o momento pedia, me sorriu e me olhou até que a doçura daquele olhar abraçasse e beijasse o meu coração. As minhas lágrimas desciam, mas no olhar daquela criança não havia medo ou preocupação por me ver assim, antes mantinha fixo em mim o seu olhar sorridente. Por um momento eu desviei o olhar para o Luciano, mas ele já não estava mais ali, agora entendia isso, como disse a pastora Lídia: a borboleta saiu do casulo e voou. Era mais fácil encontrar o Lu no sorridente olhar daquela criança. A cerimônia acabou, foi o tempo dos últimos abraços e despedidas.


Depois de partilhar um lanche com amiga e amigos, fomos para casa. Chegando lá fui buscar refúgio nas minhas plantas, um dos lugares que eu encontro com o Jardineiro. Confesso que fazia muito tempo que não as olhava do jeito que gosto e preciso. Ao me dirigir a elas, percebi que o olhar sorridente daquela criança me preparou para descobrir novos botões de orquídeas. Sempre fico de olho para ver se vem algum novo botão por ali, mas eu não percebi que esses já haviam brotado e cresciam. Era a verdade do ciclo da vida se apresentando a mim: chore a morte, mas não se desesperance. Chorar a morte, viver a morte, não significa que a nova vida não vai brotar. No choro da morte são os sinais de vida que vão secando as nossas lágrimas e transformando a ausência em saudade suportável, o Jardineiro cuida de nós.

Enquanto mostrava toda orgulhosa o broto da vida que surgira, percebi outra orquídea que tinha em sua haste uma flor morrendo e uma ensaiando seu crescimento, afagos da esperança em mim. Se tudo tem um porquê, não faço a mínima ideia de qual é o meu em ter vivido tudo isso, o que sei é que hoje dou a mão aquele menino de olhar sorridente para que ele me guie a ad-mirar as flores que chegam. Tenho certeza de que é nesse “Crer e ser” que encontrarei os sentidos e sentimentos que legitimam a vida da tia Nésia, da minha madrinha Ivone e do especial Luciano. Lá tenho a liberdade de rememorar essas pessoas e sentir o aroma e a brisa da beleza dessas vidas...minha floresta no meu apartamento está à disposição para quem quiser chorar e esperançar, mais brotos virão. Há braços!

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